Perdas!
A manhã começa com um “Eh carapau”, gritado de um carro em andamento quando ela se encontra a pôr gasóleo no carro. Piropo desatualizado. Não eram estes que davam multa? O dia lá segue, reunião, preparação de um novo letivo que não tarda chega sem convite.
A tarde é inusitada. Aquelas tardes que ninguém quer ter, mas que são o espelho do que mais temos garantido na vida, o fim dela. Os rituais religiosos são seráficos, com palavras de uma esperança ansiada, de consolo que o cérebro não retém. Ditos numa voz monocórdica, de forte sotaque brasileiro, proveniente de lá ou adquirido na mistura de qualquer outra língua, os conselhos e consolos do padre soam a filme, livro, algo que está escrito e instituído. E na mente dela, pelo menos na dela, mas não só, saltam letras, palavras, frases. Começa mentalmente a descrever as pessoas, o local, a urna, as flores colocadas meticulosamente em frente ao altar, as senhoras que olham para ver quem entra, os olhares mais ou menos enervados, mais ou menos tristes, mais ou menos deslocados dos que vão entrando e prestando homenagem. Ela vê as pessoas a quem aquela pessoa pertencia a sofrer, a reagir às palavras, gestos e extensos silêncios do ministro que lidera a cerimónia e de repente sente-se egoísta porque chora. Porque se recorda de um dia há 22 anos, que dói quando assim recordado, porque sente dor por si e pela sua pessoa que partiu, pelas que irão, porque aos poucos terminam os convites para os casamentos e batizados dos amigos e afins e começam a ver-se, também, nestas situações. Bolas, mas ela foi para apoiar e sofre e fica choramingas… Acorda, és adulta, reage lá! Não é só ela, com certeza. Cada um que ali está pensa, com maior ou menor grau, na perda já sofrida ou a sofrer, nem que seja por uns segundos.
Na cabeça dela a descrição é escrita, o que parece que ameniza lágrimas ao tentar ordenar tudo de forma sintaticamente coerente. E como a escrita a expurga, escreveu. A quem hoje, e noutros dias, todos os dias, sofre perdas, a esperança de que tudo passe e a certeza de que no fim tudo fica bem.